quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A poesia de Affonso Ávila




Affonso Ávila é um poeta mineiro que nas décadas a partir de 50 teve grande importância na renovação da poesia brasileira. Com alguns companheiros fundou o movimento "Tendência", caracterizado pelo nacionalismo crítico. A leitura de uma antologia de seus poemas demonstra que ele seguiu mesmo esse preceito. Especialista da história e cultura barroca (escreveu 2 ensaios sobre o tema), Affonso também trouxe essa temática para sua poesia. Livros como "Cantaria Barroca" e "Código de Minas" são revisitações críticas da história de Minas Gerais: a exploração aurífera, a Inconfidência, a estratificação social, etc. Sempre muito crítico, satírico por muitas vezes. E a maneira pela qual Affonso faz suas críticas é a quase sempre através de paródias. Um tipo de paródia paralela, em que o texto parodiado é contraposto ao novo: um ao lado do outro. Um bom exemplo é o ótimo poema "Antifamília" que entrou, com muito mérito, na antologia "Os cem melhores poemas brasileiros do século XX", organizada por Ítalo Moriconi. No poema há 2 textos: um rebuscado, erudito, que engrande a família mineira (a família como uma instituição sagrada) e outro que se opõe a ele. Frase a frase. Uma frase de um, contra uma frase de outro. Dois textos que se cruzam, criando um jogo de palavras cáustico. Posto aqui um trecho, o final, para terem uma ideia melhor do que falo:

[...]

Com sua retórica
com suas retortas
de diz-que de urge-que
de uísque e uísque
de eis-que de pois-que
de uísque e uísque
o ar degas do deputado
as adegas do deputado

Com sua crosta
com sua crônica
de cera e diamantes
de seriados amantes
de recintados balofos
de reincidentes abortos
as deselegantes senhoras
as dezmaiselegantes senhoras

Com seus opostos
com seus opróbrios
de usura e de abuso
de usurário abuso
de clausura e de uso
de enclausurado uso
a família mineira
a antifamília mineira



Esse esquema parodístico está presente em muitos dos poemas da antologia. Quanto ao estilo de Ávila, o jogo de palavras, que desconstrói um texto para o surgimento de outro, esse predomina em todos os poemas. Por isso, algumas partes do livro podem soar cansativas para o leitor, que tem diante de si um fazer poético relativamente mecânico, ainda que criativo. Ressalto, no entanto, que vale a pena conferir a obra de Ávila. Uma experiência bem interessante. Sobre esse fazer poético, é válido o comentário de E. M de Melo e Castro, no livro "A poesia de vanguarda no Brasil", lançado em Portugal: "Affonso Ávila [...], praticante de uma poesia-referencial de grande poder desmistificador e combativo, a partir de um rigor quase matemático no vocabulário e na sintaxe" . Sobre esse conceito de Poesia-Referencial, é o próprio Ávila que esclarece tal ideia: "incompatível com o exercício aleatório, com o verso inspirado e fortuito da fruição lírico-subjetiva, a poesia referencial exige que o poeta se aplique lucidamente:
1)na opção de temas ou seleção dos estímulos captados de seu mundo existencial.
2)na planificação do poema que ele se impôs com o seu tema;
3)na consulta do material de informação;
4)na articulação da linguagem-síntese;

[...] "


Como se depreende da declaração, Affonso Ávila é bem cônscio de seu fazer poético. Ele rumou por um caminho e, pela leitura de seus poemas, vemos que foi muito feliz nele. Como eu disse no início da postagem, ele foi de grande importância na renovação da poesia brasileira, justamente por experimentar variações em suas criações.
Para fechar, mais um poema de Ávila:

ARTE DE FURTAR

O poeta declarou que toda criação é tributária de outras

criações no permanente processo de linguagem da poesia


O poeta afirmou que todo criador é tributário de outros no

processo de linguagem da poesia


O poeta se confessou um criador tributário de outros na

linguagem de sua poesia


O poeta não esconde que sua poesia é tributária da linguagem

de outros criadores


O poeta não esconde que sua poesia é influenciada pela

linguagem de outros criadores


O poeta não faz segredo de que se utiliza da linguagem de

outros poetas


O poeta fala abertamente que se apropria da linguagem de

outros poetas


O poeta é um deslavado apropriador de linguagens


O POETA É UM PLAGIÁRIO

Um comentário:

  1. Curioso. Gosto do traje haikai no âmago da proposta temática. A síntese tem disso. A matemática tem muito disso. Bela fusão.

    ResponderExcluir