sábado, 24 de outubro de 2009

Um poeta e seu leitor

É noite de sexta e eu estou no terminal de ônibus. O carro chega. Encontro um lugar ao fim dele para sentar-me. Acomodo-me, distraído. Então, entra pela porta de trás do ônibus um homem. Um mendigo. Alto e magro, pele negra. Uma barba grande e grisalha. Traz consigo um saco de plástico contendo latinhas de cerveja vazias e um cheiro forte de mundo (enquanto tomo banho todo dia, não deixando o mundo fixar-se em mim por muito tempo). O homem senta-se nos degraus do ônibus. A porta se fecha e o carro segue seu rumo. Continuo distraído percorrendo os olhos pelos passageiros e pela paisagem noturna que derrete lá fora. De repente, uma voz familiar:

-- E aí, Miguel, como é que tá?

Miguel é o homem das latinhas, sentado no degrau. Quem pergunta é um homem de cabelos grisalhos, óculos, e que traja um paletó azul. Está sentado de frente ao degrau do homem, do Miguel. Reconheço, então, que o senhor de paleto azul é o Caco, o poeta Caco de Oliveira, aquele das várias intervenções pela cidade, da poesia carimbada, dos haicais, enfim, aquele da boa poesia. Não o conheço muito bem. Abordei-o uma vez na rua, para tirar uma dúvida sobre um de seus livros. Nessa ocasião, impressionou-me a simpatia e a singularidade de Caco. Muito espontâneo e educado: coisa rara de se ver. Espontâneo e educado também é Miguel, que responde às perguntas de Caco com muita graça. À pergunta inicial de Caco, ele diz que está tudo bem. Diz que a vida está corrida "muitas empresas, sabe?". Começo a sentir uma grande felicidade, embora ainda não consiga explicá-la. A piada de Miguel foi boa, mas nem tanto para me deixar tão sorridente. Por que a felicidade, então? Bem, só penso nisso agora, pois ontem, no ônibus, só queria acompanhar o diálogo dos dois. Creio que Caco o conheceu pelas suas andanças no centro da cidade. Miguel tem um rosto familiar: todos que frequentam o centro já o viram. Mas poucos conversam com ele.
Respondendo o poeta, Miguel falou de como tem se alimentado, e das suas andanças pela cidade. Uma conversa pacata e gostosa, a dos dois. (E eu, que no início estava louco para trocar de lugar, sentar ao lado do Caco e lhe perguntar sobre outra coisa - uma antologia recém lançada - fiquei no meu canto, só ouvindo, sem atrapalhar)
Em cada ponto, desceu um pouco de tempo. A viagem passou rápida. Quando me dei conta, o poeta estava se preparando para descer. Aí ele disse:

-- Eu vou te dar um livro, Miguel

Miguel continuou com o ar grave, uma característica sua. Olhou para Caco e ficou vendo o poeta abrir sua bolsa (vejam que figura: uma mochila escolar azul e vermelha, do homem-aranha) e retirar um exemplar de um de seus livros. Livro bonito, novinho. Trata-se do último lanaçamento de Caco, o livro Cardume de Nuvens. "São haicais", explica o poeta ao leitor intrigado. Caco estende o livro para Miguel fazendo uma brincadeira com ele: abre as abas do livro ("as orelhas") e, com um momvimento de asas batendo, faz com que Miguel receba um livro-pássaro em suas mãos.
Miguel, muito humilde, agradece o presente e acolhe o pássaro entre as mãos. Logo que entrega o presente, o poeta se despede do companheiro e desce em sua parada. O ônibus segue sua rota, Miguel segue sentado no degrau, e eu sigo em meu rodízio de olhares, distraindo-me principalmente naquele figura de camisa e calça toda suja e chinelos velhos. Miguel fica silencioso. Ouço um breve rumor sair de sua boca, mas é muito discreto, indecifrável. Então, Miguel levanta-se do degrau e vai sentar-se na mesma poltrona que o poeta até então havia usado. Botou o livro (que tem uma capa muito bonita) no colo e começou a folheá-lo. Não sei se Miguel sabia ler ou se era um grande leitor. Sei que ele percorreu as páginas com aquele seu ar grave, de como quem está intrigado: um leitor intrigado. Uma imagem muito bonita, que fotografei na memória e agora colo aqui. Logo Miguel fecharia o livro, não por desinteresse, tenho certeza. Talvez inquietação. Ou talvez por perceber que a viagem chegava ao fim.
Logo, surgiu o terminal do bairro: parada final. Sou o último a descer (em parte pelo desejo de observar os outros, principalmente o Miguel). Este, assim que sai aproxima-se da lixeira do terminal e vasculha com o braço seu interior. Com pressa, passo por Miguel rumo à catraca que é a saída do terminal. Enquanto passo por ela, observo que Miguel vem logo atrás. Espero um pouco, com uma enorme vontade de conhecer um pouco mais dessa figura. Olho pra ele e digo:

-- O Caco é um cara muito gente-boa, né?

Ainda com seu ar grave (que é simpático) ele confirma minha opinião e completa:

-- É assim que a gente aprende, velho.

Dito isso, desejou-me um bom fim de semana e tomou um rumo contrário ao meu.
Também tomei meu caminho rumo à casa, pensando que a minha felicidade numa descoberta (eu quero descobrí-la todo dia): Viver Livre.
Viver Viver Viver
Viver, velho.
É assim que a gente aprende.

3 comentários:

  1. Edu,

    Sua crônica é muito boa, gostei muitíssimo...
    E é bom saber, também, que sua alma sensível permeia o mundo.

    Um beijão!

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  2. Eduardo, li esta sua crônica ontem pela manhâ e deixei para comentá-la mais tarde...(Só que não deu tempo) Mas fiquei com as imagens dela quase o dia todo...Deu alegria lê-la também...=)
    Belo texto!!
    Té!

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  3. é sensível seu escrito. o fato de vc ter observado tudo isso já é único.

    parabéns por ter transformado em texto tão bonito.

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