terça-feira, 18 de agosto de 2009

O início, o fim e o meio

Fim. Essa palavra está no imaginário de muitas pessoas. Foi ela que sempre encerrou os contos clássicos e, até hoje, encerra filmes, romances, histórias populares, etc. Na literatura, geralmente, essa palavra significa o fim da história, o desenlace das intrigas, o desfecho.
Por muito tempo, assim se comportaram as narrativas. Mas a Literatura é viva: sempre em constante movimento. Criam-se novas estruturas, novas linguagens, subvertem-se padrões, até então inabaláveis. O pensamento do homem está sempre se modificando, modernizando-se, e isso acarreta em inúmeras mudanças no modo de se pensar e fazer a arte. A Literatura é viva: eterna metamorfose. Hoje em dia, as boas histórias desafiam cada vez mais seus leitores. O tradicional esquema começo, meio e fim agora convive com muitos outros modelos narrativos. Os exemplos são fartos. Um dois mais oportunos é "História meio ao contrário", de Ana Maria Machado, cujo título já prepara o leitor para uma narrativa diferente, em que surge, logo no ínício, a clássica frase "(...) e foram felizes para sempre".
Exemplo muito interessante também é o filme "A História Sem Fim", de Wolfgang Petersen. Assim como o livro de Machado atiça o futuro leitor, esse filme traz um título que provoca o futuro espectador, afinal, como pode haver uma história sem fim? Há sim. Aliás, a história que esse filme conta é justamente sobre a Literatura: o casamento, o jogo entre o leitor e o livro. O filme todo é uma grande metáfora para essa relação forte, na qual um não existe sem o outro.
O protagonista é o menino Bastian que, convivendo num ambiente angustiante (um ambiente familiar frágil), se refugia na fantasia para poder, enfim, sonhar. E o instrumento para mergulhar no mundo fantástico é o livro. A história que o menino lê é a saga de outro jovem: Atreyu, menino corajoso que aceita a missão de salvar o seu reino (o reino de Fantasia) do terrível "nada" que o assola. Bastian vai, aos poucos, se identificando com Atreyu: compartilha suas angústias, seus medos, suas alegrias. Luta com ele, pensa com ele. Na verdade, Bastian é Atreyu (e isso é mostrado numa belíssima cena em que um é reflexo do outro). Nessa cena, é curioso o estranhamento que tal constatação causa: Bastian se recusa a acreditar que participa da história. Esse estranhamento é marca da Literatura: ela nos mostra as coisas por outro ângulo e isso, à primeira vista, assusta. Ela nos desnuda: joga luz sobre nossos desejos e medos mais íntimos. Por isso estranhamos e fugimos. Mas não demora muito, e voltamos ao texto, pois nele nos reconhecemos. E Bastian se reconhece na figura de Atreyu. A missão de Atreyu é uma tentativa de resgatar a fantasia que as pessoas insistem em deixar adormecida, permitindo que o "nada" invada o reino - o mundo - e destrua quase tudo. O nada, longe de ser algo concreto,
é bemo que sugere seu nome: a ausência de imaginação, da criatividade, do sonho, da esperança. E tudo isso Bastian vai percebendo ao correr as páginas do livro, que lê com cada vez mais vontade, até que chega o momento em que o menino se descobre dentro da história. Ele, o leitor, é quem tem o poder de salvar o reino da fantasia, basta acreditar nisso. E Bastian acredita.
Mais que uma metáfora da relação leitor/livro, o filme é um brinde à imaginação. A história de Bastian tem, sim, um desfecho. Mas não um fim. Trata-se de um ciclo. Atreyu/Bastian lutou, caminhou para chegar ao mesmo local de partida: a si próprio. Ao longo da missaão, Atreyu/Bastian percorre muitas milhas, mas a verdadeira caminhada foi dentro de sua própria consciência.
A fantasia precisa de liberdade. Como tantas outras boas história, esse filme vem nos lembrar que a literatura -e a arte em geral-, com seu espírito inquieto e questionador, é um veículo sem-igual para as pessoas embarcarem. Lembra-nos que a palavra é capaz de traduzir toda a nossa humanidade. A palavra comporta tudo: o mundo todo.

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