sábado, 1 de agosto de 2009

Não aos textos apócrifos!

Apócrifo é o texto atribuído¹ a uma pessoa que não o escreveu, ou seja, uma farsa. Geralmente os textos falsos são atribuídos a grandes autores, na esperança de que consiga-se afirmar um texto somente pelo nome de quem o escreveu, e não pela qualidade desses textos. Aliás, a qualidade desses milhares de textos apócrifos que circulam pela internet é, em suma, horrível. Lixo sobre lixo. E fazem de tudo: ora adulteram textos de autores conhecidos, editando suas linhas ou acrescentando outras; ora criam um texto totalmente novo e "botam na conta" do autor famoso. Quanto mais famoso um autor, mais peso (e autoridade) tem para afirmar um texto, assim autores que mais com sofrem esse crime² são os mais conhecidos. E tem de tudo: desde poetas como Fernando Pessoa e Mário Quintana, até cronistas como Arnaldo Jabor e Luís Fernando Veríssimo.
O pior de tudo é que atribuir esses textos aos autores famosos, na esperança de afirmá-los, é algo que funciona! As pessoas passam e repassam e-mail contendo esses textos e não se preocupam em checar se o texto que leem e enviam foram de fato, escritos pelo autor em questão. Eis um exemplo (tirado de minha caixa de e-mail):


'A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê, já passaram-se 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado.
Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.
Desta forma, eu digo: Não deixe de fazer algo que gosta devido à falta de tempo, a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais.'


Mário Quintana (apócrifo)

POIS BEM... Vamos ao original...eis aí, extraído do livro "Esconderijos do Tempo", publicado pela primeira vez em 1980, pela editora L&PM:

Seiscentos e Sessenta e Seis

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas: há tempo...
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente...

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

COMO SE PODE NOTAR, o poema teve versos alterados, resultando numa aberração.
O primeiro verso já surge com problemas, que se à primeira vista parecem leves, são graves erros se lembrarmos o quão delicada é a escolha, na poesia, das palavras (e Mário é um poeta maravilhoso que usou-as como poucos). Na poesia uma simples troca pode mudar todo o rumo do texto e até arruiná-lo.
Nesse poema, Quintana fala da passagem do tempo com melancolia, pois fala do quanto nos apegamos à contagem das horas, e não vemos o tempo passar, ou seja, vivemos pouco. Ao final, diz que se tivesse outra chance, outra vida, faria diferente pois não daria ouvidos ao relógio, simplesmente viveria.
Pois bem...nesse primeiro verso adulterado, tem-se " A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.", enquanto no original tem-se "(...)é uns deveres que nós trouxemos (...) em casa." O responsável pela adulteração conseguiu a façanha de, já no primeiro verso, acabar como o texto de Quintana. A escolha de Quintana por um artigo indefinido (uns) sugere imprecisão, incerteza. Enquanto isso, a versão adulterada traz "o dever", com um artigo definido, como se fosse muito clara a ordem e o significado da vida. Ora, se fosse tão clara e certa a vida, o poeta não iria se lamentar de não tê-la vivido tanto como queria! Além disso, o adulterador pôs no singular (dever) o que no original está no plural (deveres), em mais uma clara adulteração.
E os crimes continuam... o verso "Quando se vê, passaram 60 anos..." é trocado de posição e adulterado para "Quando se vê, já passaram-se 50 anos!" Primeiramente, ao trocar para o 50 anos, quebra-se o jogo que Mário propunha com o título Seiscentos e sessenta e seis (o e-mail adulterado nem traz o título), com o uso das marcações de tempo "60 anos", "sexta-feira" e "seis horas". Outro pecado capital está em incluir um ponto de exclamaçõa ao final do verso. Essa efusão sem propósito tira o ritmo do texto, que no original é de desencantamento ante a passagem das horas. Nesse caso, as reticências usadas por Quintana são muito mais enriquecedoras ao texto.
Eu não vou ficar relacionando falta por falta cometida pelo adulterador (nunca saberemos a identidade dessa pessoa, ou até dessas pessoas, já que à medida que são repassados, alguém altera mais um pouco...). Só vou dizer também que no acréscimo (impróprio, obviamente) das duas últimas linhas - "Desta forma, eu digo: Não deixe de fazer algo que gosta devido à falta de tempo, a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais." - está, me parece, a chave para explicar a multiplicação dos textos apócrifos. A pessoa que inclui uma frase seu num texto famoso e o repassa está direta ou indiretamente alimentando o desejo de ter um pensamento seu (uma "criação" sua) com autoridade, para sentir beleza e orgulho de algo que se criou. Aquelas duas últimas linhas transformam o poema de Quintana numa fábula medonha, com uma mensagem óbvia, já que Quintana diz isso e de uma forma bem mais interessante através da sugestão, sem cair no óbvio, deixando ao leitor a missão de extrair do texto as lições sobre o tempo.
Em alguns casos, como crônicas totalmente recriadas-sem uma linha verdadeira sequer- atribuídas a Veríssimo encontraremos pessoas frustradas que se apoiam no bom escritor para disseminar seus testículos, ops, textos. Além disso, esse fenômeno é reflexo do pouco senso crítico dos leitores em geral, que se contentam em ler textos de qualidade mais-que-duvidosa.

Se é triste constatar que os textos apócrifos são amplamente divulgados, mais triste é deduzir disso que as pessoas leem pouco. Se leem pouco, também adquirem pouco senso crítico. Assim, aceitam esses textos com subserviência, e mais do que isso, com prazer (principalmente por que se reconhecem nas mensagens de auto-ajuda frequentes nesses textos). É desalentador.
Por isso, peço a todos que me leem (apesar de saber que posso contar o número dos me leitores numa mão só) que digam não aos textos apócrifos! Que briguem com quem os enviou (responda o e-mail!), pois o apócrifo é a destruição de uma obra de arte.
O conselho é checar. Não repasse e-mails se você não tem certeza da correta procedência do texto, principalmente se o autor em questão é reconhecido.

Até!

NOTAS INÚTEIS:

¹ Lembrando que isso se aplica para qualquer obra, não necessariamente literária. Músicas, por exemplo, são alvos constantes. Exemplo que me vem a memória é a música (música?) "Vampiro Doidão", letra pobre e asquerosa costumeiramente atribuída a Raul Seixas (My God!), genial compositor brasileiro, que nunca pariu um lixo desses.

² A palavra "crime" vai aqui tanto no sentido formal (é ilegal fazer uso dos direitos autorais sem a permissão do autor, exceto se as obras dele já estiverem em domínio público), como também vai no sentido informal, já que adulterar uma obra de autores como Fernando Pessoa é um crime, um pecado, um absurdo sem tamanho.

2 comentários:

  1. Life is a lot of school assignments
    to be done at home.
    Before you know it,
    it’s already six o’clock.
    There’s time…
    Before you know it,
    it’s already Friday…
    Before you know it,
    sixty years have gone by!
    Now, it’s too late to flunk out…
    If, some day, I were given
    another chance,
    I wouldn’t even look at a clock.
    I’d keep moving,
    always moving ahead,
    discarding along the way
    the useless golden
    shells of the hours…

    Mario Quintana
    (translated by John D. Godinho)
    Six hundred and sixty-six in Time’s Hiding Places

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  2. Oh, good translation...

    Seria mais útil se vc me dissesse seu nome, Mrs. Godinho. Enriqueceria muito esse post. Veja só: temos um comentário apócrifo, numa postagem sobre textos apócrifos! Genial, genial...

    Aliás, seria mais que útil: seria uma glória.
    Tenho tão poucos leitores assumidos, e agora me vem um ghost-reader?

    É simples... é só dizer my name is...

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